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05 fevereiro 2016

Reflexão para a Quaresma: A Verdade que Liberta!

  [As citações bíblicas neste artigo são da Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH -SBB)]
           Romanos 14 apresenta, no meu entender, algo contundente: o Senhor não toma nenhuma posição sobre as nossas querelas doutrinárias, religiosas, de costumes e de moral. De certa forma o Apóstolo São Paulo apresenta um critério ético para que possamos conviver com as nossas diferenças.
 “Aceitem entre vocês quem é fraco na fé sem criticar as opiniões dessa pessoa.  Por exemplo, algumas pessoas creem que podem comer de tudo, mas quem é fraco na fé come somente verduras e legumes.  Quem come de tudo não deve desprezar quem não faz isso, e quem só come verduras e legumes não deve condenar quem come de tudo, pois Deus o aceitou.
 Quem é você para julgar o escravo de alguém? Se ele vai vencer ou fracassar, isso é da conta do dono dele. E ele vai vencer porque o Senhor pode fazê-lo vencer.
 Algumas pessoas pensam que certos dias são mais importantes do que outros, enquanto que outras pessoas pensam que todos os dias são iguais. Cada um deve estar bem firme nas suas opiniões.  Quem dá mais valor a certo dia faz isso para honrar o Senhor. E também quem come de tudo faz isso para honrar o Senhor, pois agradece a Deus o alimento. E quem evita comer certas coisas faz isso para honrar o Senhor e dá graças a Deus.”   (Rom 14. 1-6)
O acolhimento de quem está “fraco na fé” não deve ser para contendas.  Para muitos cristãos, os que não creem como eles creem, são “fracos na fé”, “heréticos”, possessos do demônio...  Surgem então as discussões infindáveis, que aumentam o preconceito de uns com os outros e de outros com os uns (preconceito gera preconceito)!  As discussões progridem para a ira, porque se tornam prisioneiras da “verdade absoluta”;  a ira gera intolerância e a intolerância gera a perseguição.  Nada melhor que “verdades absolutas” para gerar a histeria do fanatismo e da violência!
No texto em referência (Rom 14) São Paulo trata das diferenças entre os cristãos judeus e os cristãos gentios (que não vieram do judaísmo).  Já naquele tempo as comunidades cristãs eram tentadas pelo demônio da “certeza” e da “verdade absoluta”.  Judeus cristãos e cristãos não-judeus viviam às turras por causa da Lei, dos usos e costumes. Naquele tempo e em todo o tempo de sua história, a Igreja vive nessa tentação.
Hoje critica-se o islamismo radical (jihadista), porque persegue quem discorda, quem não vive a fé islâmica daquela forma, persegue os cristãos, persegue outros credos, destrói patrimônios culturais em nome da “fé verdadeira”! Mas, não foi isso que a Igreja (a instituição eclesiástica que substituiu o Império Romano e se tornou também Império) fez durante séculos? Esquecemos a “diabólica” Inquisição (chamada “Santa”!)? E, de certa forma não é o que faz ainda grande parte da Igreja, fechada em sua fraca doutrina, cega pelo fundamentalismo bíblico?  Sempre nos pedem orações pela Igreja Perseguida, mas quase nunca se pede orações pela Igreja que persegue, para que o Senhor a liberte de suas “verdades histéricas”!
“ Porque nenhum de nós vive para si mesmo e nenhum de nós morre para si mesmo. Se vivemos, é para o Senhor que vivemos; e, se morremos, também é para o Senhor que morremos. Assim, tanto se vivemos como se morremos, somos do Senhor. Pois Cristo morreu e viveu de novo para ser o senhor tanto dos mortos como dos vivos.” (Rom 14.7-9)

O fanatismo de todos os tipos surge porque certa “verdade” se torna um fim em si mesma, ou seja, se torna um absoluto que não admite diferença ou discordância. Vive para si mesmo! O critério que São Paulo apresenta é que tudo se subordina ao Senhor, porque a Igreja de verdade, é do Senhor, não dessa ou daquela doutrina, dessa ou daquela “verdade”.
A questão é que a Fé não se limita a um discurso, mas é essencialmente uma experiência pessoal e profundamente íntima. Fé não produz necessariamente um comportamento religioso formal, pelo contrário inspira um comportamento religioso comunitário e profundamente solidário, que se expressa simbolicamente nas liturgias e nas confissões de fé, mas a Fé não se esgota, e muito menos é escrava delas! Pelo contrário, a Fé é uma postura de abertura ao que Deus fez e está fazendo.
O Espírito Santo não cabe em nenhuma das nossas doutrinas, e se as inspira é para dar um sentido no tempo e no espaço para a experiência da Fé, não para ser um absoluto imutável.
São Paulo continua:
“Portanto, por que é que você, que só come verduras e legumes, condena o seu irmão? E, você, que come de tudo, por que despreza o seu irmão? Pois todos nós estaremos diante de Deus para sermos julgados por ele.  É isto o que as Escrituras Sagradas dizem: ‘Juro pela minha vida, diz o Senhor, que todos se ajoelharão diante de mim e todos afirmarão que eu sou Deus.’ Assim, cada um de nós prestará contas de si mesmo a Deus.
 Por isso paremos de criticar uns aos outros. Pelo contrário, cada um de vocês resolva não fazer nada que leve o seu irmão a tropeçar ou cair em pecado.  Por estar unido com o Senhor Jesus, eu estou convencido de que nada é impuro em si mesmo. Mas, se alguém pensa que alguma coisa é impura, então ela fica impura para ele. Se você faz com que um irmão fique triste por causa do que você come, então você não está agindo com amor. Não deixe que a pessoa por quem Cristo morreu se perca por causa da comida que você come.  Não deem motivo para os outros falarem mal daquilo que vocês acham bom.  Pois o Reino de Deus não é uma questão de comida ou de bebida, mas de viver corretamente, em paz e com a alegria que o Espírito Santo dá.
E quem serve a Cristo dessa maneira agrada a Deus e é aprovado por todos.” (Rom 14.10-18)

São Paulo fala de questões importantes naquela época, no contexto da Igreja de segunda geração, onde as normas judaicas ainda estavam muito presentes na cultura de muitas comunidades, embora em outras, não era sequer referência.
Não! não estou defendendo um relativismo estéril. Estou dizendo que não vale a pena discutir o azul com quem só enxerga o cinza! Na medida em que evitamos discussões apaixonadas e juízos de valor, estamos testemunhando que o Reino de Deus está acima dessas diferenças, que o importante é a justiça, a paz e a alegria no Espírito. Importa o afeto, o carinho, a compreensão, a misericórdia, a solidariedade. Esse é o testemunho realmente evangelizador.
“Por isso procuremos sempre as coisas que trazem a paz e que nos ajudam a fortalecer uns aos outros na fé.  Por uma questão de comida, não destrua o que Deus fez. Todos os alimentos podem ser comidos, mas é errado comer alguma coisa quando isso faz com que outra pessoa caia em pecado.  O que está certo é não comer carne, não beber vinho, nem fazer qualquer outra coisa que leve um irmão a cair em pecado. Mas guarde entre você mesmo e Deus o que você crê a respeito desse assunto. Feliz a pessoa que não é condenada pela consciência quando faz o que acha que deve fazer!  Mas quem tem dúvidas a respeito do que come é condenado por Deus quando come, pois aquilo que ele faz não se baseia na fé. E o que não se baseia na fé é pecado.”   (Rom 14.19-23)
São Paulo está dizendo que agir com misericórdia com o diferente é uma atitude de sabedoria que agrada a Deus e isenta-nos do julgamento rigoroso baseado em nossos próprios juízos!
O Evangelho de João coloca nos lábios de Jesus o seguinte:
“Então Jesus disse para os que creram nele: — Se vocês continuarem a obedecer aos meus ensinamentos, serão, de fato, meus discípulos e conhecerão a verdade, e a verdade os libertará.” (João 8.31-32)
Essa frase de Jesus está no contexto de uma discussão com os fariseus (os “donos da verdade” naquele tempo), quando, como sempre, Jesus mostra-lhes a contradição entre o que ensinam e o que praticam (leia João 8...).
Portanto, veja se a verdade que tu conheces te liberta do preconceito... do julgar e condenar os diferentes... da certeza “absoluta” falsamente cartesiana (René Descarte não tem nada com isso!)...
Rev. Luiz Caetano, ost+
PS.: Algumas observações, para ser melhor compreendido, porque o tema é complexo e não se resolve com "atitudes politicamente corretas", que são uma forma de intolerância e leva ao relativismo parcial: os politicamente corretos excluem os que deles discordam!  
  1. Não defendo aqui que sejamos tolerantes. A tolerância não significa respeito, nem facilita o diálogo; tolerância é aceitação por obrigação; não é uma atitude solidária, muito menos expressa misericórdia; no máximo é sinônimo de "boa educação". É uma atitude moralista.
  2. Não estou sugerindo que se respeite aqueles que abusam da boa fé das pessoas ou apregoam ideologias maliciosas (como as ideologias da prosperidade a qualquer custo) e incitadoras de ódio. Estes devem ser combatidos com veemência (não com violência) porque não são éticos, não contribuem para a edificação social. 
  3. Não afirmo que posturas como o racismo, o islamismo radical, as ideologias fascistas, devam ser respeitadas; antes devem ser combatidas de forma radical, porque incitam ódio, promovem a violência e buscam padronizar a sociedade. Da mesma forma, não estou apoiando os pseudo-marxismos  que são todos, sem exceção, fascistas! 
  4. Finalmente, entendo que os cristãos não são subordinados à Lei expressa no Antigo Testamento. Os cristãos se orientam pelas bases éticas do Novo Testamento, porque o Cristo cumpriu a Lei dando a ela uma referência fundamentada no Reinado de Deus e não em normas morais rígidas e intransigentes que se estabeleceram a partir do conceito de "povo eleito" em contraposição aos "não eleitos" (discriminação) - tal é a postura que Jesus assumiu diante dos "donos da verdade" de seu tempo histórico.  O Novo Testamento tem um conteúdo ético específico fundamentada na experiência pessoal com Jesus  Cristo, que - ai sim - serve como referência para uma outra compreensão do Antigo Testamento não mais como Lei, mas como ética contextual - a referência da misericórdia e da solidariedade, porque  - cf. 1ª João 4.19 - Deus nos amou primeiro! E amou a todos, não apenas um povo! São Paulo afirma que em Cristo não há homem ou mulher, judeu ou grego (cf. Gálatas 3.28; Colossenses 3.11 e outros); afirma também que tudo me é lícito, mas nem tudo me convém (1ª Coríntios 10.23)! O critério da conveniência se refere à edificação e, por isso, produz uma ética contextual e não uma norma moral rígida e padronizada. A ética cristã é sempre uma ética encarnada na realidade onde Cristo se manifesta, sendo Ele (e não as nossas normas) o mesmo ontem, hoje e sempre (Hebreus 13.8)! 
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