Uma das grandes contribuições da Reforma Protestante no século XVI foi a afirmação de que a Graça de Deus nos é dada… gratuitamente! Nós não precisamos pagar nada por ela, nem precisamos fazer nada para recebê-la, a não ser aceitá-la! A Graça de Deus foi conquistada para nós pelo ato redentor de Jesus Cristo, nosso Senhor! Jesus é o fiador de nossa dívida para com Deus, e Ele mesmo pagou essa dívida, de forma que não devemos mais, se aceitamos a oferta que o Senhor nos faz: tê-Lo como companheiro de jornada, seguí-Lo como discípulos e discípulas, fazer o bem como sinal da salvação que já recebemos!
Deus não tem uma contabilidade de nossas vidas de modo que tudo que fazemos é lançado como crédito ou débito! Deus não faz joguinhos chantagistas com a nossa vida! Ele nos oferece o Seu Amor incondicionalmente! A nós cabe aceitar ou não a Graça!
Não há nada que possamos fazer para impressionar a Deus, de forma positiva ou negativa. Se assim fosse, Ele não seria Deus, seria um sujeito que precisa de agradinhos, um carente emocional! Ou um corrupto: toma lá, dá cá! Deus não é assim!
A decisão de estar ou não com Deus ao seu lado é uma decisão do Ser Humano! como em toda decisão tomada, há consequências. A narrativa bíblica sobre a queda humana, o chamado “pecado original”, em Gênesis 3, mostra o Ser Humano experimentando a tentação de ser igual a Deus, e aceitando essa tentação. Com isso, descobriu sua própria natureza de criatura, e ao invés de todo o poder, descobriu-se o todo impotente:
A cobra era o animal mais esperto que o SENHOR Deus havia feito. Ela perguntou à mulher: "É verdade que Deus mandou que vocês não comessem as frutas de nenhuma árvore do jardim? " A mulher respondeu: "Podemos comer as frutas de qualquer árvore, menos a fruta da árvore que fica no meio do jardim. Deus nos disse que não devemos comer dessa fruta, nem tocar nela. Se fizermos isso, morreremos." Mas a cobra afirmou: "Vocês não morrerão coisa nenhuma! Deus disse isso porque sabe que, quando vocês comerem a fruta dessa árvore, os seus olhos se abrirão, e vocês serão como Deus, conhecendo o bem e o mal." A mulher viu que a árvore era bonita e que as suas frutas eram boas de se comer. E ela pensou como seria bom ter entendimento. Aí apanhou uma fruta e comeu; e deu ao seu marido, e ele também comeu. Nesse momento os olhos dos dois se abriram, e eles perceberam que estavam nus. Então costuraram umas folhas de figueira para usar como tangas. Naquele dia, quando soprava o vento suave da tarde, o homem e a sua mulher ouviram a voz do SENHOR Deus, que estava passeando pelo jardim. Então se esconderam dele, no meio das árvores. (Gênesis 3:1-8)
Atualizando o texto da narrativa, respeitando a situação histórica de quando o texto foi escrito, podemos entender o que está sendo dito na narrativa: a “cobra” tenta o Ser Humano com o poder (ser igual a Deus) e o Ser Humano viu que isso parecia agradável, atraente e desejável. Mas ao final, descobre-se nu, isto é, totalmente vulnerável e impotente diante de Deus. Ao invés de todo-poderoso (igual a Deus) o Ser Humano descobre-se vulnerável e com a consequência da fragilidade do poder.
O texto de Gênesis é uma narrativa mítica, isto é, pretende compreender uma realidade a partir de uma cosmovisão que marca a identidade social e política de onde foi escrito. Não cabe discutir a verdade histórica do que é narrado; seu autor não tinha nenhuma preocupação cartesiana ou positivista, mas queria compreender a situação de injustiça e dor que percebia em seu tempo e, baseado em sua cosmovisão, compôs esse “poema”. Nesse contexto da tradição do Antigo Testamento, o Ser Humano, enganado pela sedução do poder, arcou com as consequências e perdeu a possibilidade de “passear com Deus pelo Jardim da Criação”.
Todavia, ensina a tradição cristã, que Deus não abandonou o ser humano à própria sorte, e toma atitudes para resgatar o que foi perdido pelo Ser Humano. Isso chamamos de “História da Salvação”, e assim o Antigo Testamento é compreendido pela Igreja.
Ao encarnar-se na História Humana, em Jesus o Cristo, Deus promove o resgate do Ser Humano, de forma que a comunhão antes rompida se estabelece. A isso chamamos Graça! Uma iniciativa gratuita de Deus resgatando a criatura que para Ele é mais que criatura:
“Mas a misericórdia de Deus é muito grande, e o seu amor por nós é tanto, que, quando estávamos espiritualmente mortos por causa da nossa desobediência, ele nos trouxe para a vida que temos em união com Cristo. Pela graça de Deus vocês são salvos.” (Epístola de São Paulo aos Efésios 2.4-5)
Isso foi o que percebeu, dentre outros, Martinho Lutero. A Graça nos é oferecida gratuitamente, porque somente Deus pode reconciliar-nos com Ele. Por isso, não precisamos fazer “boas obras” para merecer o amor de Deus, mas fazemos as boas obras como reconhecimento desse Amor que recebemos em gratuidade, porque qualquer dívida que tenhamos com Deus, Cristo, nosso fiador, já resgatou!
Infelizmente muitos hoje afirmam que para receber a Graça temos de pagar os dízimos (“toma-lá, dá cá!”), cumprir normas de conduta moral sem fundamentação ética (“ou você me obedece ou está lascado!”), seguir instruções e normas humanas de quem usufrui do poder simbólico da religiosidade do povo! Ao contrário, damos os dízimos e organizamos nossa conduta nos princípios éticos do Amor, porque Deus nos amou primeiro e queremos levar essa Boa Nova aos confins da Terra! Fazemos as boas obras da salvação, porque as recebemos antes, de Cristo!
A tentação do poder absoluto ronda a humanidade em todas as culturas e em todos os tempos. Cada um de nós experimenta essa tentação no cotidiano: “a bola é minha, eu mando no jogo!”, “quem paga as contas aqui sou eu, por isso eu mando aqui!”, e assim vai: nossas relações são marcadas sempre pela tentação de poder sobre o outro. Aceitar a Graça que nos é oferecida em Jesus Cristo significa acima de tudo render-se ao Poder Absoluto do Amor Incondicional de Deus, e viver a vida dentro dessa sujeição amorosa (que os mais antigos chamam de obediência ou de temor a Deus).
Quando nos entregamos ao Amor Incondicional de Deus, as questões de poder desaparecem, porque, afinal, proclamamos o Reinado de Deus em Cristo, o mesmo Cristo que sendo Deus
“[…] não tentou ficar igual a Deus. Pelo contrário, ele abriu mão de tudo o que era seu e tomou a natureza de servo, tornando-se assim igual aos seres humanos. E, vivendo a vida comum de um ser humano, ele foi humilde e obedeceu a Deus até a morte — morte de cruz. Por isso Deus deu a Jesus a mais alta honra e pôs nele o nome que é o mais importante de todos os nomes, para que, em homenagem ao nome de Jesus, todas as criaturas no céu, na terra e no mundo dos mortos, caiam de joelhos e declarem abertamente que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus, o Pai.” (Epístola de São Paulo aos Filipenses 2.5-11)
Rev. Luiz Caetano, ost+
As citações bíblicas são da Nova Tradução na Linguagem de Hoje, Sociedade Bíblica do Brasil (http://www.sbb.org.br)
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