Em artigo anterior com este mesmo título (veja Entendendo nossa Catolicidade Episcopaliana), expliquei um pouco sobre como a tradição Episcopal Anglicana entende o conceito de Igreja e o que caracteriza nossa identidade, diferenciando-nos de outras tradições cristãs, não menos importantes e reconhecidas. Afirmamos que nossa identidade como parte da Igreja de Cristo se expressa como unidade na diversidade. Isso tem um significado muito importante e fundamental para que se compreenda o ser (ethos) de nossa Igreja.
Unidade na diversidade significa que não somos uma Igreja Confessional! Explicando: a maioria das Igrejas Cristãs são Confessionais, isto é, adotam uma Confissão de Fé comum que as identifica e define sua forma de ser. Tais Igrejas têm um Corpo Doutrinário, algo como um Catecismo, bem definido, que é aceito por todas as pessoas que congregam nessas Igrejas. A maioria das Igrejas Protestantes Históricas, herdeiras da Reforma do século XVI são Igrejas Confessionais. Quando se constituíram cada uma dessas Igrejas adotou uma Confissão de Fé, uma Declaração de Fé que lhe dá unidade e identidade. Essas Confissões foram definidas em Concílios e Sínodos, e são frutos de consenso que determina o modo de ser da Igreja, o seu “ethos”. Desde a Reforma no século XVI, várias Confissões foram definidas e adotadas por grupos cristãos, e delas derivam muitas das Igrejas Protestantes: a Confissão de Augsburg (1530), a Confissão de Westminster (1634), por exemplo, são as duas mais conhecidas.
Por outro lado, a Igreja Católica Romana também tem seu corpo doutrinário, estabelecido de forma canônica e entendida como Magistério da Igreja, fiel interprete das Escrituras, que se expressa pelos Documentos Papais e da Cúria Vaticana, havendo um Catecismo Oficial para toda a Igreja.
As Igrejas Orientais seguem caminhos diferentes, não foram influenciadas pelas correntes filosóficas que marcaram o Ocidente, mas podemos ver uma certa organização doutrinária na maioria delas; todavia as Igrejas Orientais têm outras características, são profundamente enraizadas nas culturas dos povos onde se estabeleceram e são diferencias por tradições litúrgicas e doutrinárias. De certa forma são Igrejas de Comunhão.
A Igreja da Inglaterra, que é a Igreja de origem da Comunhão Anglicana, teve uma definição confessional a princípio, conhecida como os “39 Artigos de Religião”, que delineiam, digamos assim, sua base doutrinária, tendo adotado a tradição católica do ocidente e do oriente, princípios da Reforma, e incorporou boa parte da tradição da antiga Igreja Celta, que foi quase eliminada com a chegada dos missionários enviados por Roma nos séculos V e VI, finalmente dobrando-se à latinização no século VII (Concilio de Whitby, em 664).
Essa mesma Igreja da Inglaterra acompanhou a expansão do Império Britânico e instalou-se nas colônias e territórios imperiais. Todavia, a Igreja da Inglaterra não se transplantou para as colônias. Fiel ao seu princípio de catolicismo marcado pela Reforma, e o conceito de Igreja Nacional (Igreja de um povo), a Igreja foi se encarnando nas culturas das colônias e assim foram surgindo, a partir dos missionários ingleses, os embriões de Igrejas Nacionais inspiradas no modelo da Igreja da Inglaterra. Os 39 Artigos foram sendo reinterpretados e na maioria das Igrejas derivadas da Igreja da Inglaterra, foram caindo em desuso, uma vez que a reflexão teológica começa a dialogar com as culturas. Nesse sentido o cristianismo da América Latina seguiu caminho completamente oposto…
A formação da Igreja Episcopal dos Estados Unidos, por exemplo, não foi apenas uma mudança de nome da Igreja Colonial, mas a união e incorporação de várias correntes cristãs que estavam presente no território norte-americano, que se uniram para formar uma Igreja Nacional que adotou o modelo episcopal de governo e acolheu diferentes tradições e confissões dentro de si mesma – unidade na diversidade! É essa Igreja dos Estados Unidos que vem fazer missão no Brasil ao final do século XIX e dá origem à hoje Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, que também é fruto da Missão entre os Japoneses (imigrantes, a partir da Igreja do Japão, especialmente nos Estados de São Paulo e Paraná) e das Capelanias Britânicas nos principais portos brasileiros.
Em meados do século XIX a Igreja da Inglaterra, começa a tomar consciência que seu ethos e sua atividade missionária – aliada ou não ao imperialismo britânico – criou uma rede de Igrejas Nacionais com semelhanças entre si, embora diferenciadas pelas culturas: haviam adotado o governo episcopal (e seus bispos estavam na linha sucessória de bispos ingleses), adotavam uma Liturgia fundamentada no livro de Oração Comum e cooperavam entre si. Por seu lado, a Igreja Episcopal dos Estados Unidos já fazia missão em vários países da América Latina e da Ásia, mantendo o mesmo princípio de encarnação cultural. Assim surgiu lentamente o conceito de Comunhão Anglicana. A base doutrinária dessa Comunhão é mínima, e conhecida como Quadrilátero de Lambeth-Chicago (1886/1888):
a) As Sagradas Escrituras do Antigo e do Novo Testamento como base da Fé confessada pela Igreja, pois contêm tudo que é necessário para a Salvação;
b) A confessionalidade da Comunhão se expressa nos Credos da Igreja Antiga: o Credo Apostólico, o Credo Niceno-Constantinopolitano e também o Credo Atanasiano (quase nunca usado no Brasil);
c) A Comunhão adota os dois sacramentos biblicamente instituídos, a saber, o Batismo e a Eucaristia – os demais são reconhecidos de forma diferenciada nas Igrejas ou mesmo em uma mesma Igreja;
d) O Episcopado Histórico como forma de governo, como garantia da sucessão apostólica e sinal da unidade da Igreja.
Formulada em tal simplicidade, essa base doutrinária permite uma diversidade de interpretações e formas de vivenciar a fé cristã. Não somos uma Igreja monolítica do ponto de vista doutrinário, mas aberta à reflexão permanente e, por isso, muitas vezes os episcopalianos são vistos como vanguarda teológica ou demasiadamente liberais…
Pode-se resumir isso de forma simplista assim: nenhuma devoção, uso ou costume, norma moral (ética sim: fundamenta-se nas Escrituras), padrão litúrgico, modelo de espiritualidade, é obrigatório ou imposto, respeitando-se a prática devocional individual. Por exemplo se você gosta de uma espiritualidade mariana, inspirada na Beatíssima Virgem Maria, viva isso, mas não obrigue os outros a ter a mesma prática.
Por isso, caro leitor, se você visitar várias igrejas de nossa Comunhão, em várias partes do mundo, verá que não há uma uniformidade, mas uma grande diversidade. Essa diversidade ocorre inclusive dentro de uma mesma diocese. Algumas comunidades terão a aparência de uma Igreja Romana anterior ao Vaticano II, ou uma Igreja Oriental: você verá imagens, quadros, muitas velas acesas, a liturgia é realizada com sofisticado cerimonial e o clero paramentado de forma solene; outras comunidades parecerão uma Igreja Evangélica: um discreto altar, sem velas, a decoração do templo no máximo admite um cruz, o cerimonial é bem simples (embora usa-se o mesmo Livro de Oração Comum), há uma ênfase maior na pregação e na piedade pessoal; você ainda encontrará comunidades onde a liturgia é dançada (na África especialmente), os cânticos são modernos e em ritmo popular; outras ainda misturam tudo isso em sua prática comunitária… enfim, ouso dizer que não há duas comunidades anglicanas idênticas em todo o mundo! Todavia, estão em comunhão no Senhorio de Jesus Cristo, em unidade na diversidade, sendo o símbolo dessa unidade o Quadrilátero de Lambeth Chicago.
Pode ser atrevimento de minha parte, uma certa euforia, mas eu sinto que somos muito parecidos com a Igreja Primitiva, antes da cristandade ser estabelecida quando o cristianismo se torna religião oficial e estatal do Império Romano do Ocidente no século IV.
Ser uma Igreja de Comunhão não é simples: não somos unidos porque aceitamos essa ou aquela doutrina, esse ou aquele princípio de usos e costumes, porque rezamos de uma forma ou de outra… somos unidos porque reconhecemos que fazemos parte de uma mesma comunidade de fé, diversa em sua forma de ser, mas centrada em Jesus Cristo, nosso Senhor.
Assim, ninguém se torna verdadeiramente anglicano ou episcopaliano porque adotou uma forma específica de confessar a fé; tornar-se episcopaliano é um exercício contínuo e um desafio, porque você terá de conviver com os diferentes em Comunhão, e terá de aprender a reconhecer a sua Igreja nas suas diversas maneiras de ser, conforme a prática e a história de cada comunidade.
No 1º Centenário da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (1989) adotou-se o lema “Igreja a gente vive!”; isso se opõe ao “Igreja a gente segue!”, e também ao “Igreja do Pastor Fulano!”.
Meu irmão de Ordem, companheiro de ministério e um dos meus confessores, Rev. Onofre Machado Ramos ost+, falecido ano passado, dizia: “Igreja a gente vive com paixão!”. Isso é ser parte de uma Igreja de Comunhão: uma relação sempre de desafio na aceitação do outro, em nome de Jesus Cristo, e de companheirismo solidário.
Rev. Luiz Caetano, ost+
===/===
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Muito obrigado pelo seu comentário.
Seja breve e objetivo.