Muitas tradições antigas, especialmente no Oriente, apresentam várias narrativas sobre o nascimento de heróis, semideuses ou deuses, de uma virgem. Assim, a narrativa de São Lucas sobre o nascimento de Jesus é algo muito semelhante. Escrevendo no universo helenista, Lucas, que era um grego, seguiu a mesma linha de pensamento ao compor o mito sobre o nascimento de Jesus (Lucas 1.26-38; 2.1-20).
Mito não é uma mentira! Também não significa uma verdade histórica positiva. Mito é a maneira de interpretar uma situação histórica dentro de um referencial de mistério, uma tentativa de dizer o indizível. Mito não significa falsidade, mas é alguma coisa como a poesia: diz mais que as palavras… fala mais ao coração que à razão. Ao contrário das lendas, os mitos se referem à uma realidade histórica interpretada à partir de uma visão de mundo que se desenvolve no cotidiano. Todas as culturas humanas, de todas as épocas, se fundamentam em mitos.
O mito, ao contrário da lenda, fundamenta um sentimento de esperança que não se limita no tempo, mas aponta para a transcendência e tem um horizonte aberto para o futuro, uma esperança que pode ser experimentada e construída!
Lucas não pretendia contar o nascimento de Jesus; afinal esse era um fato conhecido pela Igreja onde surge o texto do Evangelho. O evangelista quis mostrar aos gregos, e à diversidade do mundo helenista do Império Romano, quem é Jesus, o Cristo. E usou uma linguagem que eles compreendiam: o mito do nascimento de um deus. Assim, a narrativa de Lucas não pretende ser uma narrativa histórica positiva; é uma narrativa mítica que pretende afirmar o mistério da presença de Deus na vida humana.
Todavia, a narrativa do nascimento de Jesus, apresentado por Lucas, enquanto mito, é exatamente o oposto dos mitos heroicos antigos, conhecidos pelos gregos, egípcios, persas, hindus. O menino nascido da Virgem não se manifesta como um deus, não opera maravilhas, não surge em um lugar de honra. Pelo contrário, nasce na periferia da periferia, longe dos palácios e das glórias humanas, e precisa ser reconhecido, como o foi pelos pastores e pelos magos do oriente, mas não pelo Rei Herodes… O Cristo não se manifesta em glória, mas na humildade e na fragilidade de um bebê humano, totalmente dependente e incógnito. Nem todos O reconhecem!
Assim, o nascimento de Jesus surge como uma nova maneira de falar do Sagrado, apresenta um Deus diferente, afirma a Presença de Deus entre as pessoas e não acima delas no inatingível da transcendência. Ele se manifesta como Deus Conosco, não como Rei, mas como Servo, e é nessa perspectiva que Seu ministério se desenrola. Seu Reinado é aos poucos percebido por aqueles que O acolhem e caminham com Ele. Na convivência com Jesus, os discípulos e discípulas vão descobrindo o Cristo, o Ungido de Deus, o Filho de Deus, o Deus Encarnado (em carne!). Essa aventura da descoberta atinge seu auge após a Paixão, quando O percebem ressuscitado e vivo entre eles.
O Evangelho é, assim, a afirmação do mergulho da transcendência de Deus na imanência da vida humana; por isso o Cristo é chamado Deus Conosco! “O Senhor está aqui!”, dizemos na liturgia da missa. Não somos nós que vamos em direção a Deus, mas é Deus quem vem caminhar conosco! Este é o cerne do Evangelho! E isso é sempre uma grande novidade: a gratuidade do amor de Deus move nossa esperança de felicidade e de vida em plenitude, apesar de todos os desamores desta vida.
Tenha certeza disso: Deus ama você primeiro, aceita você como você é e transforma sua vida não a custa de sacrifícios, ameaças ou castigos, mas pela Sua ação amorosa radical, que na linguagem da Igreja se chama Graça! Assim ensinamos na Igreja Episcopal Anglicana.
O Natal é um convite para que você acolha um menino frágil, e caminhe com ele no decorrer da vida. Você perceberá que está caminhando com o Filho de Deus, o Senhor da Vida!
Acolha o Menino e deixe que Ele cresça em seu coração, permita que Ele se revele nos fatos simples da vida cotidiana. Isso sim é um Natal Feliz!
Rev. Luiz Caetano, ost+
===/===
2 comentários:
Caro amigo e irmão.
Obrigado por publicar isso, e pela coragem. Não é normal vermos pastores assumindo uma hermenêutica realmente consistente e profundamente teológica, sem simplismos que tornam a fé cristã uma crendice.
Tomei a liberdade de traduzir o texto para o Alemão e nosso Pastor a publicou no Boletim da nossa comunidade em Ultrecht
Parece que você ouviu a mensagem da nossa diretora espiritual na reflexão do último dia do nosso retiro...
Gostei muito do texto.
Postar um comentário
Muito obrigado pelo seu comentário.
Seja breve e objetivo.